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É neste novo quadro que devem ser observadas as relações do Estado com a pluralidade das religiões, na ótica do modelo que se tem designado por “laicidade”, implicando que o Estado não adote qualquer religião, nem sequer se pronuncie sobre questões do foro interno das organizações religiosas.Porém, esta laicidade da Idade Contemporânea – por contraste com o hierocratismo medieval ou o jurisdicionalismo moderno – não tem sido construída sem sobressaltos preocupantes, uns do passado, outros do presente, não se sabendo bem o que o futuro pode trazer.

Julgo que muitos ainda não aprenderam a viver num espaço de liberdade e de diversidade, preferindo a unicidade ideológica do seu pensamento único ateísta ou das verdades feitas à sua maneira, ou até mesmo de recalcamentos antigos que não conseguiram superar.

Num passado não muito longínquo, assinalaram-se as mais duras manifestações laicistas dos regimes marxistas-leninistas, que pretenderam aniquilar toda a expressão religiosa, sobretudo católica, ortodoxa e protestante, segundo o ensinamento do seu muito amado mestre Karl Marx, com a famosa máxima de considerar que “a religião é o ópio do povo”.

Do presente, registe-se os muito nefastos episódios de laicidade negativa, que cortam a possibilidade de qualquer cooperação com as atividades religiosas, pretendendo remetê-las ao seu espaço privado.São, como quer que seja, visões contrárias à afirmação da verdadeira liberdade religiosa, que qualquer texto nacional e internacional de direitos fundamentais ou de direitos humanos não tem rebuço em proclamar, a qual supõe uma laicidade cooperativa.Muito bem nisso está o Direito da Religião de Portugal com a sua Lei da Liberdade Religiosa, que tem sido um exemplo para muitos outros países, onde consta o princípio da cooperação como corolário de uma laicidade positiva.

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Contudo, o futuro confirmará um outro tipo de laicismo mais subtil, numa diferente modelação da relação entre o Estado e a Religião, que se pode apelidar de “teofobia”, o qual consiste em diabolizar a religião com base em generalizações, exercício que se aproveita de erros e crimes cometidos, sempre lamentáveis e que justificam toda a punição e reparação possíveis.A tática, na verdade, mudou: já não sendo crível continuar na senda do marxista laicista – uma derivação do marxismo cultural -, agora adota-se outro caminho, o de vilipendiar o fenómeno religioso, reduzindo-o ao ridículo e à caricatura, apoucando-o na sua função moral e social.Qual é o fulcro deste método: a “teofobia”, que se serve de sofismas sectários, retirando o fenómeno religioso do seu contexto próprio, que é a sociedade e a cultura que o impregnam.

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É a esse propósito que, não havendo a coragem para proibir a religião, se prende moldá-la ao sabor de uma ideologia de Estado, sob a aparência de uma neutralidade religiosa, que cai no mesmo erro do laicismo marxista.E as conclusões hipócritas dessas generalizações são evidentes:- o escândalo dos abusos que só acontecem na Igreja Católica – quando sabemos que noutros meios, como o educacional, desportivo, militar e policial, não faltam exemplos;- o escândalo do segredo que só é inquebrantável no confessionário – quando também o é no segredo de Estado ou no segredo profissional;- o escândalo de os pais se recusarem a sujeitar os seus filhos a programas de cidadania para melhor os inserirem na sociedade pós-moderna – quando se sabe muito bem que, em muitos casos, há uma doutrinação radicalizada por programas implícitos que os docentes “acrescentam”, os fiéis servidores da ideologia de género, substituindo a família pela escola como titular do poder paternal;- o escândalo do financiamento que só nas atividades religiosas sucede – quanto também há, e não é pouco, aliás muito superior, no desporto ou na arte, em cujo domínio os ajustes diretos, postos a nu quanto a um artista que há dias deu nas vistas, são uma vergonha que ninguém quer fiscalizar ou punir…

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Julgo que muitos ainda não aprenderam a viver num espaço de liberdade e de diversidade, preferindo a unicidade ideológica do seu pensamento único ateísta ou das verdades feitas à sua maneira, ou até mesmo de recalcamentos antigos que não conseguiram superar.Sempre tive a convicção de que é na tolerância inter-religiosa – e na tolerância que os ateus devem ter para com os crentes – que se pode aferir a saúde das democracias e das sociedades, uma vez que o fenómeno religioso nos coloca diante das perguntas centrais acerca da nossa existência, às quais ninguém pode fugir, nem que seja no “último dia”.Quais serão os próximos passos dos intolerantes “laicistas de serviço”:- abolir o escudo nacional por causa da sua conotação religiosa?- derrubar estátuas de santos de praças e rotundas que se notabilizaram pela sua heroicidade?- destruir ou deixar de pagar os restauros de monumentos de índole religiosa a pretexto de assim não se fazer a propaganda da religião em causa?Quero ver até onde vai essa coragem… Professor Catedrático/Investigador de Direito e Religião da Universidade Nova e da Autónoma de Lisboa